Não existe, no Código Penal (CP) nem no Código de Processo Penal (CPP), dispositivo que determine, de modo geral, que, no concurso de crimes de ação privada e pública, uma deva preferir outra. O que nos leva a buscar a melhor doutrina para compreender o tema.
É consabido que em se tratando de concurso de crimes há a prática, pelo agente, de vários delitos que se apuram mediante ação penal privada e pública, cada uma deles é promovida pelo seu titular, ou seja, Ministério Público e titular do direito de queixa (querelante/ofendido). Não pode Ministério Público oferecer denúncia em relação aos dois crimes.
Como proceder nessa situação?
Respondendo a pergunta, no caso de concursos de crimes que se apuram mediante ação penal privada e pública é imprescindível que se forme um litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e o titular do direito de queixa, para que ambos os delitos sejam objeto, conjuntamente, de um só processo e um só julgamento.
Para ilustrar, inclusive com exemplo, é importante trazer a lição de Damásio Evangelista de Jesus [1],
Quando há concurso formal entre um crime de ação penal pública e outro de ação penal privada, o órgão do Ministério Público não pode oferecer denúncia em relação aos dois. Suponha-se que o sujeito cometa crimes de injúria e ato obsceno, em concurso formal (CP, arts. 140 e 233, respectivamente). A injúria é, em geral, crime de ação penal privada, podendo ser também crime de ação pública condicionada; o ato obsceno, de ação penal pública. Neste caso, como ensinava José Frederico Marques, “o Ministério Público não fica autorizado a dar denúncia em relação a ambos os delitos. É imprescindível que se forme um litisconsórcio entre o Promotor e o titular do jus querelandi, para que ambos os delitos sejam objeto de acusação e possam ser apreciados conjuntamente na sentença”, aplicando-se o disposto no art. 77, II, do CPP. Cada ação penal é promovida por seu titular, nos termos do art. 100, caput, do CP.
O mesmo ocorre no concurso material e nos delitos conexos.
No mesmo sentido ensinam Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fabio Machado de Almeida Delmanto:[2]
(…) No concurso de crimes há a prática, pelo agente, de vários delitos, que podem ser de ação pública ou privada. Aí não há crime complexo e o Ministério Público só pode iniciar a ação quanto aos crimes de ação pública, ficando para o ofendido a iniciativa quanto aos de ação privada. Haverá então, LITISCONSÓRCIO ATIVO entre o Ministério Público e o ofendido, o primeiro oferecendo denúncia e o segundo, queixa no mesmo processo.
Na mesma linha Guilherme de Souza Nucci:[3]
Concurso de crimes e ação penal: havendo concurso de delitos, envolvendo crimes de ação pública e privada, o Ministério Público somente está autorizado a agir no tocante ao delito de ação pública incondicionada. Ex: em um cenário onde há uma tentativa de homicídio e uma injúria, o Promotor de Justiça só pode agir no tocante ao delito de ação incondicionada (tentativa de homicídio). Pode dar-se, no entanto, o litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e o Particular.
Como visto, a doutrina defende a aplicação do disposto no art. 77, II, do CPP, observando o art. 100, caput, do CP.[4]
O art. 77, II, do CPP trata sobre a competência em caso de continência que ele vê no concurso ideológico (ficção legal). Isso ocorre segundo o referido dispositivo, quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes (art. 70 do CP), ou, ainda, nos casos de erro na execução (art. 73 do CP) e resultado diverso do pretendido (art. 74 do CP).
Embora não esteja no rol do art. 77, II, do CPP, admite-se ainda quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, constituindo o concurso material (art. 70 do CP) e nos crimes conexos.
Para dar início ao trâmite processual, adéqua aqui o que Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar chamam de ação penal adesiva, que funciona de modo similar ao litisconsórcio ativo no processo civil, só que ao invés de uma petição única (litisconsórcio originário), a regra é que haja a propositura de denúncia pelo Ministério Público e a de queixa pelo ofendido, surgindo assim um “litisconsórcio” (impróprio) em momento ulterior, qual seja, o da reunião das demandas:[5]
Ação penal adesiva (…) é a possibilidade de militarem no polo ativo, em conjunto, o Ministério Público e o querelante, nos casos onde houver hipótese de conexão ou continência entre crimes de ação penal de iniciativa pública e de ação penal de iniciativa privada. Trata-se de caso similar ao do litisconsórcio do direito processual civil, interessando destacar que, no âmbito do processo penal, ao invés de uma petição única (litisconsórcio originário), a regra é que haja a propositura de denúncia pelo Parquet e a de queixa pela vítima do delito conexo, surgindo assim um “litisconsórcio” (impróprio) em momento ulterior, qual seja, o da reunião das demandas.
Portanto, havendo concurso de crimes, formal ou material, e nos delitos conexos, de ação penal pública e de ação penal privada, forma-se um litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e querelante, para que ambos os delitos sejam objeto do mesmo processo e possam ser apreciados no mesmo julgamento, sem necessidade de desmembramento, a fim de que sejam as ações penais processadas separadamente.
Notas:
[1] Direito penal. vol 1. Parte geral. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pags. 713/714
[2]Código Penal comentado acompanhado de comentários, jurisprudências, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pg. 191
[3]Código Penal Comentado. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pag. 572
[4] CP: “Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.”
CPP: “Art. 77. A competência será determinada pela continência quando: (…) II- no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53, segunda parte, e 54 do Código Penal.” Essa hipótese liga-se aos atuais arts. 70, 73, segunda parte, e 74, segunda parte, do CP, todos referindo-se ao concurso formal.
[5] Curso de Direito Processual Penal. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, pag. 189